Heraldo Vitta

O estado de necessidade da pessoa pode excluir penalidade administrativa?

No meu livro A Sanção no Direito Administrativo (2003), utilizei um exemplo clássico para explicar a incidência do estado de necessidade nas infrações administrativas: o motorista que transita acima da velocidade permitida para socorrer a esposa em parto iminente, ou para levar ao hospital uma pessoa em risco de morte.

Esse exemplo buscava mostrar que a tipicidade administrativa nem sempre basta para legitimar a sanção. É essencial verificar se o ato, embora formalmente típico, não é materialmente ilícito, por estar amparado em uma causa justificante.

Passadas duas décadas, a jurisprudência vem confirmando essa visão. Em setembro de 2025, o Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação Cível nº 1012025-43.2022.8.26.0071, rel. Des. Paulo Ayrosa) anulou auto de infração ambiental aplicado a moradora de Bauru que cortou uma árvore infestada por cupins e condenada a risco de queda. A poda e o corte foram feitos sem autorização da Prefeitura Municipal, em plena fase vermelha da pandemia (Covid), quando os serviços públicos estavam suspensos.

O Tribunal reconheceu que a conduta se enquadrava em estado de necessidade: havia risco grave à residência e à integridade dos ocupantes, e o sacrifício de um bem menor (o exemplar arbóreo) era justificável para preservar um bem jurídico maior (vida, saúde e patrimônio).

A decisão aplica, no campo administrativo, os princípios do artigo 24 do Código Penal, e do art. 188, II, do Código Civil, ambos reconhecendo o estado de necessidade como causa geral de exclusão da ilicitude. Assim, o ordenamento jurídico reafirma sua coerência: a conduta que visa evitar um mal maior não pode ser tratada como infração.

O motorista que acelera para salvar uma vida e a moradora que corta uma árvore condenada movem-se sob o mesmo fundamento: a prevalência do bem jurídico maior sobre a rigidez da norma. Essa é a essência do Direito quando aplicado com razão e humanidade.